SOBRE RESILIÊNCIA E OS PROBLEMAS
RELACIONADOS COM AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ
Do livro – Resiliência
na adolescência
Refletindo com
educadores sobre superação de dificuldades
O que é resiliência?
“Dirigindo-se então para eles, cabisbaixo, para lhes mostrar
que estava pronto para morrer. Foi então, que viu seu reflexo na água: O
patinho feio se transformara num magnífico cisne branco”... (Hans Cristian
Anderson,autor de O patinho feio,apud Cyrulnik, 2004:2)
“Não é tarefa fácil falar sobre resiliência. De fato, ela
existe desde o início da história da humanidade, sempre que homens e mulheres
se defrontam com adversidades e precisam superá-las ou transformá-las”.
Desde o final da década de 60 e 70 a resiliência começou a
ser estudada com mais afinco pela psicologia e psiquiatria, designando a
capacidade de resistir às adversidades a força necessária para a saúde mental
estabelecer-se durante a vida, mesmo após a exposição a riscos. Significa a
habilidade de acomodar-se e reequilibrar-se constantemente frente às
adversidades. Na medicina, teria como foco a capacidade de uma pessoa resistir
à doença, infecções ou intervenções, com ou sem ajuda de medicamentos (Tavares,
2001). Na saúde pública, encaixa-se perfeitamente na ótica de prevenção e da
promoção de saúde, do bem estar e da qualidade da vida de indivíduos e
sociedades. Na educação a resiliência tem ocupado um espaço relevante de estudo
e reflexão, uma vez que incita uma nova maneira de conhecer, aprender e desaprender,
mais reflexível, flexível e resilente para empreender, ser e estar com os
outros de um modo diferente. Vera Placo (2001) explica que: “No mundo atual,em
que desafios e dificuldades se apresentam a cada dia para os seres humanos, em
que a competição e a busca por espaços profissionais e pessoais se tornam mais
acirrados, em que as expectativas externas se chocam com as possibilidades
reais de realização do sujeito,este precisa ser formado e se autoformar para se
preservar psicologicamente,para reagir,para ordenar seu mundo,suas
necessidades,suas prioridades,seus desejos e suas ações,de modo a não se deixar
sobrepujar por contingências e circunstâncias a que não possa,em dado momento e
em determinadas situações,controlar e dar as respostas exigidas”(P.7).
Essa autora acentua que, se os profissionais de educação
puderem ser formados para serem cada vez mais resilentes em relação às suas
vidas pessoais e profissionais, sem dúvida poderão ser mais capazes de formar
seus alunos futuros cidadãos também cada vez mais resilentes. O estudo de
resiliência é cheio de fascinantes perguntas e quebra-cabeças, alguns dos quais
este livro se propõe a começar a desvendar buscando compreender e reforçar os
fatores que podem contribuir para promover boa saúde e condição de vida para o
desenvolvimento de crianças e adolescentes em geral, e também para aqueles que vivenciam condições de vida
mais precárias.
O foco endereçado às fases iniciais da vida deve-se ao fato
de ser nelas que se estabelecem as bases sustentadoras e norteadoras do ser
humano ao longo de sua existência e, portanto, um momento prioritário para se
pensar em prevenção. O conceito de resiliência vem tendo uma evolução ao longo
das décadas. Já foi entendido como sinônimo de invulnerabilidade, como uma
capacidade de adaptação bem sucedida em ambiente desajustado e como qualidades
e flexíveis do ser humano. Felizmente nos últimos anos esse conceito vem se complexificando,
sendo abordado como um processo dinâmico que, por sua vez, envolve processos
sociais e intrapsíquicos de vulnerabilidade e de proteção. A resiliência está
ancorada em dois grandes polos: O da adversidade representado pelos eventos de
vida desfavoráveis, e o da proteção, que aponta para a compreensão das formas
de apoio-internas e externas ao indivíduo que o conduzem a uma reconstrução
singular diante do sofrimento causado por uma adversidade.
RESILIÊNCIA E VULNERABILIDADE.
“Mas o que o patinho feio levará muito tempo para compreender
é que a cicatriz nunca é segura. É uma fenda de desenvolvimento de sua personalidade,
um ponto fraco que pode sempre se dilacerar sobre os golpes do destino. Essa
rachadura obriga o patinho a trabalhar incessantemente sua metamorfose interminável.
Então, poderá levar uma vida de cisne, bela, porém frágil, porque nunca
esquecerá seu passado de patinho feio. Mas ao se tornar cisne, poderá pensar
nele de maneira suportável. Isso significa que a resiliência o fato de se
tornar bonito apesar de tudo, nada tem a ver com a invulnerabilidade nem com o
êxito social (cyrulnik 2004:4)”.
Resiliência e vulnerabilidade encontram-se em polos opostos
da resposta individual aos riscos (Luthar & Zigler 1991;Antoni
&Koller,2000). Por vulnerabilidade entende-se a predisposição de uma pessoa
para desenvolver psicopatologia e apresentar problemas de comportamento, ou
dizendo de outra forma, uma susceptibilidade para que surja um resultado
negativo durante o desenvolvimento. No outro lado, está a resiliência, como a
predisposição individual para resistir às consequências negativas das situações
de risco e desenvolver-se adequadamente. Todavia, ser resilente não significa
ser invulnerável aos problemas. Uma pessoa resilente se abate e sofre com as
dificuldades; porém, de forma distinta há outra muito vulnerável, consegue “dar
a volta por cima” com mais facilidade e presteza.
A vida e a obra da escritora Clarice Lispector ilustra a saga
de uma pessoa que mostra capacidade de superação frente a inúmeros
obstáculos...
INVESTIGANDO RESILIÊNCIA NAS ESCOLAS DE SÃO GONÇALO - RJ
Para compreender melhor o que é resiliência optamos por fazer
no ano de 2003, uma pesquisa com 1923 alunos de 7ª e 8ª séries do ensino
fundamental e 1º e 2
º anos do ensino médio de 38 escolas públicas e particulares
do município de São Gonçalo na
região metropolitana do Rio de Janeiro, sorteadas por amostragem. Demos ênfase aos
aspectos individuais, familiares, escolares e sociais capazes de promover o
potencial de resiliência.(Assis,Pesce & Avanci, 2006).
Todos os adolescentes, responderam a um questionário anônimo,
que permitiu conhecer seu potencial de resiliência.(Wagnild & Young, 1993;
Pesce et.,2005),os eventos adversos que passaram em suas vidas os processos
externos de proteção que o meio familiar e social lhes legou e as
características pessoais que possuem e utilizam ao enfrentar problemas do
dia-a-dia. Também foram entrevistados 20 adolescentes que, compartilharam
algumas horas com as pesquisadoras, refletindo sobre suas experiências, valores,
atitudes e opiniões. As falas e os sentimentos de todos esses adolescentes
conduzem a apresentação dos resultados da pesquisa efetuada a seguir. Também
dialogam com a literatura nacional e internacional produzida sobre resiliência.
COMO AS ADVERSIDADES FEREM
“São inúmeros os golpes do destino pelos quais têm passado os
adolescentes de São Gonçalo, sempre indesejáveis mas nem
sempre evitáveis. Vale a pena refletir sobre o grau de vulnerabilidade desses
jovens em plena etapa de desenvolvimento, pois todo ser humano possui seu
limite para lidar com a adversidade.”
Outro evidente foco de manifestação de desigualdade social
surge na participação escolar. No nível macro-estrutural, a oferta de escolas
para a população de baixa renda é mais precária, seja quanto à estrutura física
como quanto à qualidade do ensino ministrado. Os adolescentes da pesquisa que
passaram por mais privações materiais têm pior desempenho em português e
matemática, participação menos ativa em sala de aula e em grupos estudantis têm
mais fragilidade para o uso de substâncias psicoativas e mais manifestações de
sofrimento emocional.
Viver a dor das brigas e a separação dos pais é outro
acontecimento da vida que atinge muito os adolescentes. Discussões familiares
envolvendo filhos, separação dos pais, novo casamento de ambos ou de um deles e
incômodo com o nascimento de um irmão ou irmã são eventos delicados de serem
abordados e que provocaram lágrimas e angustia nos adolescentes de São Gonçalo.
Metade dos adolescentes entrevistados em São Gonçalo já vivenciou pelo menos um tipo de violência psicológica
indicando a relevância que esse problema tem para crianças e adolescentes. Um
em cada três jovens testemunhou humilhação entre os pais e metade deles refere
que humilha e é humilhado pelos irmãos nas brigas do dia dia. A convivência com o sentimento de
desvalorização de si parece ser um dos poucos eventos adversos que por si só
tem capacidade de afetar o potencial de superação dos problemas. Os
adolescentes de São Gonçalo que
enfrentam muitos problemas na escola são bastante vulneráveis: Têm menor
supervisão familiar; possuem pior relacionamento com pais e professores; contam
com menos apoio social; fazem mais uso de substâncias psicoativas; cometem mais
atos antissociais; sentem mais sofrimento psíquico; têm mais baixa alto-estima;
são mais insatisfeitos com a vida; são mais vítimas de violência na família, escola
e localidade.
OS EFEITOS DA PROTEÇÃO:
“Acumulam-se evidências de que seres humanos de todas as
idades são mais felizes e mais capazes de desenvolverem melhor seus talentos
quando estão seguros de que, por trás deles existem uma ou mais pessoas que
virão em sua ajuda caso surjam dificuldades”. (Bowlby)
A pesquisa no ano 2003 aponta ainda que: Os adolescentes de São Gonçalo com maior potencial de
resiliência sentem-se bem encorajados na escola, participam mais das atividades
em sala de aula e em grupos de estudo e trabalho, além de se relacionarem mais
facilmente com os professores.
A maioria dos adolescentes de São Gonçalo tem uma forma ativa de enfrentar os problemas. Os mais
resilentes utilizam mais essas estratégicas do que os com mais dificuldades de
superação dos problemas,quando estes se dão na escola,com os pais, colegas e
namorados. Também costumam buscar mais ajuda dos pais, de outros adultos e dos
amigos. São ainda mais dispostos a procurarem a pessoa que causou o problema,
tentando dialogar sobre o assunto.
Entre os adolescentes de São
Gonçalo foram identificadas atitudes como: Aceitar os próprios limites ao
enfrentar dificuldades; confirmar para si mesmo que os problemas fazem parte da
vida; ceder à vontade dos outros, visando resolver os problemas; pensar sobre o
problema e tentar achar soluções alternativas; só pensar nos problemas quando
eles aparecem; e pensar positivamente sobre os problemas, não se preocupando
com eles porque eles costumam se ajeitar.
Os adolescentes de São
Gonçalo que são menos resilentes tendem a fugir mais dos problemas, pois utilizam
esse mecanismo em todas as áreas de seu relacionamento. Costumam esperar que “o
pior vai acontecer”. Também tentam não pensar nos problemas escolares e em suas
próprias dificuldades porque imaginam que não podem mudar nada. Indicam
sofrimento emocional constante e pessimismo com evidente incapacidade de
esperar que a situação melhore. Alguns
desses adolescentes demonstraram claramente o desânimo e falta de vontade de
reagir às dificuldades, com um sentimento de negação do problema.
Os adolescentes que utilizam mais estratégias de fugir dos
problemas em todas as áreas relacionais são os que mais consumiram substâncias
psicoativas no ano anterior à pesquisa, tais como álcool (até ficar de porre),
cigarro, maconha e cocaína, possivelmente como reflexo das dificuldades
objetivas e subjetivas que os angustia.
Adolescentes mais e menos resilentes apresentam
comportamentos similares quanto ao consumo de substâncias legais ou ilegais.
ENCARANDO OS
PROBLEMAS COM ATIVIDADE E AMOR.
O bom humor nem sempre é bem visto pelos outros como
positivo. Uma pessoa pode utilizá-lo como uma estratégia defensiva, ferina e
destrutiva para atingir a outrem, ultrapassando seu sofrimento interno, mas
estará com suas ações reproduzindo o afastamento e a falta de capacidade
relacional escondida por trás da ironia. As pessoas que conseguem usar suas
habilidades para cantar, atuar ou contar poeticamente suas dores, certamente
passam por um processo de elaboração que costuma trazer a simpatia e o apoio
dos pares. Reescrevem cotidianamente sua história de forma mais leve,assim como
fez Joaquim,um estudante de uma escola pública de São Gonçalo ao narrar numa peça teatral o sofrimento familiar
desencadeado pelo grave problema de saúde de seu pai. Ao fazer isso, tornou seu
pai mais humano e falível e foi capaz de minorar os sérios problemas que até
então tinha com ele. Neste processo de resignificar as cicatrizes que doem em
seu coração, esse adolescente ainda tão jovem, se apoia em muitos mecanismos
promotores de resiliência.
A UNIDADE DE
CADA UM
Entre os adolescentes de São
Gonçalo, constatamos que as meninas vivenciam menos adversidades na vida, possuem
mais apoio social e têm atributos individuais mais fortalecidos que os rapazes,
a exemplo da autoestima e do sentimento de competência. No entanto, em relação à
resiliência, não notamos distinção entre os sexos. No que se refere à cor da pele, embora cada
vez mais se aprenda que as diferenças genéticas entre as raças são mínimas, a
cultura introduz muitas distinções e preconceitos. Entre os jovens de São Gonçalo, verificamos um perfil
muito similar entre os de cor da pele branca ou negra. Apenas algumas
diferenciações foram encontradas. A primeira delas é o fato de que adolescentes
negros têm pais com menor escolaridade e suas famílias estão em maior número
nos estratos populares. São também adolescentes mais velhos e com maior
distorção seriedade. Outra distinção refere-se à violência física perpetrada
pelo pai, mais citada pelos jovens negros. Adolescentes negros referiram mais
que os brancos que o relacionamento com pessoas de outras classes sociais é
pior. Também disseram fazer mais uso da maconha. Tendem ainda a usar estratégias
internas e de evitação em quase todas as áreas de relacionamento. Todavia, não
apresentam diferença no potencial de resiliência, quando comparados aos jovens
brancos.
A CAPACIDADE
DE SATISFAZER COM A VIDA
Os adolescentes de São
Gonçalo que são mais resilentes referem com frequência três vezes maior
sentirem prazer com suas vidas que os menos resilentes. Os que acreditam mais
em sua capacidade de superação de problemas afirmam que estão mais satisfeitos
com sua vida; que ela está próxima de forma como gostariam que ela fosse; que
suas condições de vida são excelentes; que estão conseguindo alcançar as coisas
importantes que desejam; e, finalmente, que se pudessem viver a vida de novo, não
mudaria quase nada. Entre esses adolescentes com menos satisfação na vida é
mais comum: Avaliar-se negativamente; ter problema de saúde física e mental; apresentar
comportamento de riscos; ser vítima de adversidade como perdas e doenças na família;
ter problemas de relacionamento familiares, na escola e entre amigos; viver
muitas dificuldades socioeconômicas.
A CAPACIDADE DE CRER NO INVISÍVEL
Para a maioria das pessoas, transcendências é sinônimo de
figura divina e está comumente vinculada à religião; para outros reflete
crenças e valores morais acerca da dignidade humana. A espiritualidade tem sido
considerada um importante fator de proteção para a saúde física e psicológica
do indivíduo.
Entre os estudantes de São
Gonçalo, os mais resilentes se declaram mais vinculados a alguma religião. Confiança
em Deus e busca de contato íntimo com o mundo sagrado foi mais enfatizado pelos
primeiros que consideram a religiosidade como uma raiz que os sustenta. A
frequência à igreja é uma forma de apoio social apontada por alguns
adolescentes. Vários estudos indicam que a religião e o apoio da igreja são
importantes promotores de resiliência para jovens (Cook, 2000; Sameroff. 1993).
Um adolescente que frequenta igreja pode maximizar seu desenvolvimento, caso
ela promova orientação ajudando-o a adquirir habilidades cognitivas e
emocionais e identificar positivamente seu comportamento; estimule a expressão
de sua identidade e lhe ofereça uma comunidade de apoio e estabilidade. Possuir
alguma religião bem como frequentar igrejas, tem se mostrado importante fator
de proteção para dificultar o aparecimento de sofrimento psíquico e outros
problemas na esfera da saúde mental, além de estimular a capacidade de se
satisfazer com a vida e aumentar o potencial de resiliência(Cock,2000;Hutchinson,2004;Grom
2000;Elison,1991;Chistopher,2000; Volcan,2003).
O aspecto protetor de religiosidade também se manifesta na
redução de comportamentos antissociais como transgressão e uso de substâncias
psicoativas (Kaplan et AL,1994). Entre os adolescentes de São Gonçalo a transgressão e o uso de drogas foram
significativamente mais presentes entre os jovens que não seguem religião. Para
esses jovens, a capacidade de crer na transcendência é sinônimo de figura
divina, tendo se materializado na religião. Todavia, essa força interna que
produz alivio ao sofrimento e regenera a energia enfraquecida pelas
adversidades pode gerar conformismo ou esperança que propicia transformações. A crença no “invisível” não é
um atributo isolado do indivíduo. Sua compreensão apenas pode ser tangenciada
quando é avaliada em conjunto a outros aspectos individuais, familiares, sociais
e conjunturais.
SUCUMBINDO AOS TRANSTORNOS MENTAIS
Do total de adolescentes de São Gonçalo pesquisados, 535 (29,4%) evidenciaram sinais de
sofrimento psíquico.
As condições de vida dos adolescentes de São Gonçalo que relatam cometer transgressões indicam elevada
vulnerabilidade e a existência de escassos mecanismos de proteção.
Finalizando com estas últimas palavras dos pesquisadores contidas
no livro “Resiliência na Adolescência”, entendemos que os adolescentes de São Gonçalo que relatam cometer
infrações indicam realmente à falta de amparo, de ajuda, de auxílio e clamam
por socorros de pessoas protetoras. Então, é bom lembrarmos mais uma vez o que
dissera Edward John Mostyn Bowlby que foi um psicólogo, psiquiatra e
psicanalista britânico notável por seu interesse no desenvolvimento infantil e
por seu trabalho pioneiro na teoria de apego:
“Acumulam-se evidências de que seres humanos de todas as
idades são mais felizes e mais capazes de desenvolverem melhor seus talentos
quando estão seguros de que, por trás deles, existem uma ou mais pessoas que
virão em sua ajuda caso surjam dificuldades”.
Um grande abraço para todos que certamente apoiam as ideias
de lutar incansavelmente à procura da felicidade do nosso povo.
Do amigo Jacy Moreira.
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