terça-feira, 3 de setembro de 2013


SOBRE RESILIÊNCIA E OS PROBLEMAS RELACIONADOS COM AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ
Do livro – Resiliência na adolescência
Refletindo com educadores sobre superação de dificuldades

O que é resiliência?
“Dirigindo-se então para eles, cabisbaixo, para lhes mostrar que estava pronto para morrer. Foi então, que viu seu reflexo na água: O patinho feio se transformara num magnífico cisne branco”... (Hans Cristian Anderson,autor de O patinho feio,apud Cyrulnik, 2004:2)
“Não é tarefa fácil falar sobre resiliência. De fato, ela existe desde o início da história da humanidade, sempre que homens e mulheres se defrontam com adversidades e precisam superá-las ou transformá-las”.
Desde o final da década de 60 e 70 a resiliência começou a ser estudada com mais afinco pela psicologia e psiquiatria, designando a capacidade de resistir às adversidades a força necessária para a saúde mental estabelecer-se durante a vida, mesmo após a exposição a riscos. Significa a habilidade de acomodar-se e reequilibrar-se constantemente frente às adversidades. Na medicina, teria como foco a capacidade de uma pessoa resistir à doença, infecções ou intervenções, com ou sem ajuda de medicamentos (Tavares, 2001). Na saúde pública, encaixa-se perfeitamente na ótica de prevenção e da promoção de saúde, do bem estar e da qualidade da vida de indivíduos e sociedades. Na educação a resiliência tem ocupado um espaço relevante de estudo e reflexão, uma vez que incita uma nova maneira de conhecer, aprender e desaprender, mais reflexível, flexível e resilente para empreender, ser e estar com os outros de um modo diferente. Vera Placo (2001) explica que: “No mundo atual,em que desafios e dificuldades se apresentam a cada dia para os seres humanos, em que a competição e a busca por espaços profissionais e pessoais se tornam mais acirrados, em que as expectativas externas se chocam com as possibilidades reais de realização do sujeito,este precisa ser formado e se autoformar para se preservar psicologicamente,para reagir,para ordenar seu mundo,suas necessidades,suas prioridades,seus desejos e suas ações,de modo a não se deixar sobrepujar por contingências e circunstâncias a que não possa,em dado momento e em determinadas situações,controlar e dar as respostas exigidas”(P.7).
Essa autora acentua que, se os profissionais de educação puderem ser formados para serem cada vez mais resilentes em relação às suas vidas pessoais e profissionais, sem dúvida poderão ser mais capazes de formar seus alunos futuros cidadãos também cada vez mais resilentes. O estudo de resiliência é cheio de fascinantes perguntas e quebra-cabeças, alguns dos quais este livro se propõe a começar a desvendar buscando compreender e reforçar os fatores que podem contribuir para promover boa saúde e condição de vida para o desenvolvimento de crianças e adolescentes em geral, e também  para aqueles que vivenciam condições de vida mais precárias.
O foco endereçado às fases iniciais da vida deve-se ao fato de ser nelas que se estabelecem as bases sustentadoras e norteadoras do ser humano ao longo de sua existência e, portanto, um momento prioritário para se pensar em prevenção. O conceito de resiliência vem tendo uma evolução ao longo das décadas. Já foi entendido como sinônimo de invulnerabilidade, como uma capacidade de adaptação bem sucedida em ambiente desajustado e como qualidades e flexíveis do ser humano. Felizmente nos últimos anos esse conceito vem se complexificando, sendo abordado como um processo dinâmico que, por sua vez, envolve processos sociais e intrapsíquicos de vulnerabilidade e de proteção. A resiliência está ancorada em dois grandes polos: O da adversidade representado pelos eventos de vida desfavoráveis, e o da proteção, que aponta para a compreensão das formas de apoio-internas e externas ao indivíduo que o conduzem a uma reconstrução singular diante do sofrimento causado por uma adversidade.
                                   
                                         
                                           RESILIÊNCIA E VULNERABILIDADE.

“Mas o que o patinho feio levará muito tempo para compreender é que a cicatriz nunca é segura. É uma fenda de desenvolvimento de sua personalidade, um ponto fraco que pode sempre se dilacerar sobre os golpes do destino. Essa rachadura obriga o patinho a trabalhar incessantemente sua metamorfose interminável. Então, poderá levar uma vida de cisne, bela, porém frágil, porque nunca esquecerá seu passado de patinho feio. Mas ao se tornar cisne, poderá pensar nele de maneira suportável. Isso significa que a resiliência o fato de se tornar bonito apesar de tudo, nada tem a ver com a invulnerabilidade nem com o êxito social (cyrulnik 2004:4)”.
Resiliência e vulnerabilidade encontram-se em polos opostos da resposta individual aos riscos (Luthar & Zigler 1991;Antoni &Koller,2000). Por vulnerabilidade entende-se a predisposição de uma pessoa para desenvolver psicopatologia e apresentar problemas de comportamento, ou dizendo de outra forma, uma susceptibilidade para que surja um resultado negativo durante o desenvolvimento. No outro lado, está a resiliência, como a predisposição individual para resistir às consequências negativas das situações de risco e desenvolver-se adequadamente. Todavia, ser resilente não significa ser invulnerável aos problemas. Uma pessoa resilente se abate e sofre com as dificuldades; porém, de forma distinta há outra muito vulnerável, consegue “dar a volta por cima” com mais facilidade e presteza.
A vida e a obra da escritora Clarice Lispector ilustra a saga de uma pessoa que mostra capacidade de superação frente a inúmeros obstáculos...


               INVESTIGANDO RESILIÊNCIA NAS ESCOLAS DE SÃO GONÇALO - RJ

Para compreender melhor o que é resiliência optamos por fazer no ano de 2003, uma pesquisa com 1923 alunos de 7ª e 8ª séries do ensino fundamental e 1º e 2
º anos do ensino médio de 38 escolas públicas e particulares do município de São Gonçalo na região metropolitana do Rio de Janeiro, sorteadas por amostragem. Demos ênfase aos aspectos individuais, familiares, escolares e sociais capazes de promover o potencial de resiliência.(Assis,Pesce & Avanci, 2006).
Todos os adolescentes, responderam a um questionário anônimo, que permitiu conhecer seu potencial de resiliência.(Wagnild & Young, 1993; Pesce et.,2005),os eventos adversos que passaram em suas vidas os processos externos de proteção que o meio familiar e social lhes legou e as características pessoais que possuem e utilizam ao enfrentar problemas do dia-a-dia. Também foram entrevistados 20 adolescentes que, compartilharam algumas horas com as pesquisadoras, refletindo sobre suas experiências, valores, atitudes e opiniões. As falas e os sentimentos de todos esses adolescentes conduzem a apresentação dos resultados da pesquisa efetuada a seguir. Também dialogam com a literatura nacional e internacional produzida sobre resiliência.


                                                COMO AS ADVERSIDADES FEREM

“São inúmeros os golpes do destino pelos quais têm passado os adolescentes de São Gonçalo, sempre indesejáveis mas nem sempre evitáveis. Vale a pena refletir sobre o grau de vulnerabilidade desses jovens em plena etapa de desenvolvimento, pois todo ser humano possui seu limite para lidar com a adversidade.”
Outro evidente foco de manifestação de desigualdade social surge na participação escolar. No nível macro-estrutural, a oferta de escolas para a população de baixa renda é mais precária, seja quanto à estrutura física como quanto à qualidade do ensino ministrado. Os adolescentes da pesquisa que passaram por mais privações materiais têm pior desempenho em português e matemática, participação menos ativa em sala de aula e em grupos estudantis têm mais fragilidade para o uso de substâncias psicoativas e mais manifestações de sofrimento emocional.
Viver a dor das brigas e a separação dos pais é outro acontecimento da vida que atinge muito os adolescentes. Discussões familiares envolvendo filhos, separação dos pais, novo casamento de ambos ou de um deles e incômodo com o nascimento de um irmão ou irmã são eventos delicados de serem abordados e que provocaram lágrimas e angustia nos adolescentes de São Gonçalo.
Metade dos adolescentes entrevistados em São Gonçalo já vivenciou pelo menos um tipo de violência psicológica indicando a relevância que esse problema tem para crianças e adolescentes. Um em cada três jovens testemunhou humilhação entre os pais e metade deles refere que humilha e é humilhado pelos irmãos nas brigas do dia   dia. A convivência com o sentimento de desvalorização de si parece ser um dos poucos eventos adversos que por si só tem capacidade de afetar o potencial de superação dos problemas. Os adolescentes de São Gonçalo que enfrentam muitos problemas na escola são bastante vulneráveis: Têm menor supervisão familiar; possuem pior relacionamento com pais e professores; contam com menos apoio social; fazem mais uso de substâncias psicoativas; cometem mais atos antissociais; sentem mais sofrimento psíquico; têm mais baixa alto-estima; são mais insatisfeitos com a vida; são mais vítimas de violência na família, escola e localidade.


                                            OS EFEITOS DA PROTEÇÃO:

“Acumulam-se evidências de que seres humanos de todas as idades são mais felizes e mais capazes de desenvolverem melhor seus talentos quando estão seguros de que, por trás deles existem uma ou mais pessoas que virão em sua ajuda caso surjam dificuldades”. (Bowlby)
A pesquisa no ano 2003 aponta ainda que: Os adolescentes de São Gonçalo com maior potencial de resiliência sentem-se bem encorajados na escola, participam mais das atividades em sala de aula e em grupos de estudo e trabalho, além de se relacionarem mais facilmente com os professores.
A maioria dos adolescentes de São Gonçalo tem uma forma ativa de enfrentar os problemas. Os mais resilentes utilizam mais essas estratégicas do que os com mais dificuldades de superação dos problemas,quando estes se dão na escola,com os pais, colegas e namorados. Também costumam buscar mais ajuda dos pais, de outros adultos e dos amigos. São ainda mais dispostos a procurarem a pessoa que causou o problema, tentando dialogar sobre o assunto.
Entre os adolescentes de São Gonçalo foram identificadas atitudes como: Aceitar os próprios limites ao enfrentar dificuldades; confirmar para si mesmo que os problemas fazem parte da vida; ceder à vontade dos outros, visando resolver os problemas; pensar sobre o problema e tentar achar soluções alternativas; só pensar nos problemas quando eles aparecem; e pensar positivamente sobre os problemas, não se preocupando com eles porque eles costumam se ajeitar.
Os adolescentes de São Gonçalo que são menos resilentes tendem a fugir mais dos problemas, pois utilizam esse mecanismo em todas as áreas de seu relacionamento. Costumam esperar que “o pior vai acontecer”. Também tentam não pensar nos problemas escolares e em suas próprias dificuldades porque imaginam que não podem mudar nada. Indicam sofrimento emocional constante e pessimismo com evidente incapacidade de esperar que a situação melhore.  Alguns desses adolescentes demonstraram claramente o desânimo e falta de vontade de reagir às dificuldades, com um sentimento de negação do problema.
Os adolescentes que utilizam mais estratégias de fugir dos problemas em todas as áreas relacionais são os que mais consumiram substâncias psicoativas no ano anterior à pesquisa, tais como álcool (até ficar de porre), cigarro, maconha e cocaína, possivelmente como reflexo das dificuldades objetivas e subjetivas que os angustia.
Adolescentes mais e menos resilentes apresentam comportamentos similares quanto ao consumo de substâncias legais ou ilegais.

           
                     ENCARANDO OS PROBLEMAS COM ATIVIDADE E AMOR.

O bom humor nem sempre é bem visto pelos outros como positivo. Uma pessoa pode utilizá-lo como uma estratégia defensiva, ferina e destrutiva para atingir a outrem, ultrapassando seu sofrimento interno, mas estará com suas ações reproduzindo o afastamento e a falta de capacidade relacional escondida por trás da ironia. As pessoas que conseguem usar suas habilidades para cantar, atuar ou contar poeticamente suas dores, certamente passam por um processo de elaboração que costuma trazer a simpatia e o apoio dos pares. Reescrevem cotidianamente sua história de forma mais leve,assim como fez Joaquim,um estudante de uma escola pública de São Gonçalo ao narrar numa peça teatral o sofrimento familiar desencadeado pelo grave problema de saúde de seu pai. Ao fazer isso, tornou seu pai mais humano e falível e foi capaz de minorar os sérios problemas que até então tinha com ele. Neste processo de resignificar as cicatrizes que doem em seu coração, esse adolescente ainda tão jovem, se apoia em muitos mecanismos promotores de resiliência.
                                  

                                                  A UNIDADE DE CADA UM

Entre os adolescentes de São Gonçalo, constatamos que as meninas vivenciam menos adversidades na vida, possuem mais apoio social e têm atributos individuais mais fortalecidos que os rapazes, a exemplo da autoestima e do sentimento de competência. No entanto, em relação à resiliência, não notamos distinção entre os sexos.  No que se refere à cor da pele, embora cada vez mais se aprenda que as diferenças genéticas entre as raças são mínimas, a cultura introduz muitas distinções e preconceitos. Entre os jovens de São Gonçalo, verificamos um perfil muito similar entre os de cor da pele branca ou negra. Apenas algumas diferenciações foram encontradas. A primeira delas é o fato de que adolescentes negros têm pais com menor escolaridade e suas famílias estão em maior número nos estratos populares. São também adolescentes mais velhos e com maior distorção seriedade. Outra distinção refere-se à violência física perpetrada pelo pai, mais citada pelos jovens negros. Adolescentes negros referiram mais que os brancos que o relacionamento com pessoas de outras classes sociais é pior. Também disseram fazer mais uso da maconha. Tendem ainda a usar estratégias internas e de evitação em quase todas as áreas de relacionamento. Todavia, não apresentam diferença no potencial de resiliência, quando comparados aos jovens brancos.
        

                                  A CAPACIDADE DE SATISFAZER COM A VIDA

Os adolescentes de São Gonçalo que são mais resilentes referem com frequência três vezes maior sentirem prazer com suas vidas que os menos resilentes. Os que acreditam mais em sua capacidade de superação de problemas afirmam que estão mais satisfeitos com sua vida; que ela está próxima de forma como gostariam que ela fosse; que suas condições de vida são excelentes; que estão conseguindo alcançar as coisas importantes que desejam; e, finalmente, que se pudessem viver a vida de novo, não mudaria quase nada. Entre esses adolescentes com menos satisfação na vida é mais comum: Avaliar-se negativamente; ter problema de saúde física e mental; apresentar comportamento de riscos; ser vítima de adversidade como perdas e doenças na família; ter problemas de relacionamento familiares, na escola e entre amigos; viver muitas dificuldades socioeconômicas.


                                          A CAPACIDADE DE CRER NO INVISÍVEL

Para a maioria das pessoas, transcendências é sinônimo de figura divina e está comumente vinculada à religião; para outros reflete crenças e valores morais acerca da dignidade humana. A espiritualidade tem sido considerada um importante fator de proteção para a saúde física e psicológica do indivíduo.
Entre os estudantes de São Gonçalo, os mais resilentes se declaram mais vinculados a alguma religião. Confiança em Deus e busca de contato íntimo com o mundo sagrado foi mais enfatizado pelos primeiros que consideram a religiosidade como uma raiz que os sustenta. A frequência à igreja é uma forma de apoio social apontada por alguns adolescentes. Vários estudos indicam que a religião e o apoio da igreja são importantes promotores de resiliência para jovens (Cook, 2000; Sameroff. 1993). Um adolescente que frequenta igreja pode maximizar seu desenvolvimento, caso ela promova orientação ajudando-o a adquirir habilidades cognitivas e emocionais e identificar positivamente seu comportamento; estimule a expressão de sua identidade e lhe ofereça uma comunidade de apoio e estabilidade. Possuir alguma religião bem como frequentar igrejas, tem se mostrado importante fator de proteção para dificultar o aparecimento de sofrimento psíquico e outros problemas na esfera da saúde mental, além de estimular a capacidade de se satisfazer com a vida e aumentar o potencial de resiliência(Cock,2000;Hutchinson,2004;Grom 2000;Elison,1991;Chistopher,2000; Volcan,2003).
O aspecto protetor de religiosidade também se manifesta na redução de comportamentos antissociais como transgressão e uso de substâncias psicoativas (Kaplan et AL,1994). Entre os adolescentes de São Gonçalo a transgressão e o uso de drogas foram significativamente mais presentes entre os jovens que não seguem religião. Para esses jovens, a capacidade de crer na transcendência é sinônimo de figura divina, tendo se materializado na religião. Todavia, essa força interna que produz alivio ao sofrimento e regenera a energia enfraquecida pelas adversidades pode gerar conformismo ou esperança que propicia  transformações. A crença no “invisível” não é um atributo isolado do indivíduo. Sua compreensão apenas pode ser tangenciada quando é avaliada em conjunto a outros aspectos individuais, familiares, sociais e conjunturais.


                           SUCUMBINDO AOS TRANSTORNOS MENTAIS

Do total de adolescentes de São Gonçalo pesquisados, 535 (29,4%) evidenciaram sinais de sofrimento psíquico.
As condições de vida dos adolescentes de São Gonçalo que relatam cometer transgressões indicam elevada vulnerabilidade e a existência de escassos mecanismos de proteção.
Finalizando com estas últimas palavras dos pesquisadores contidas no livro “Resiliência na Adolescência”, entendemos que os adolescentes de São Gonçalo que relatam cometer infrações indicam realmente à falta de amparo, de ajuda, de auxílio e clamam por socorros de pessoas protetoras. Então, é bom lembrarmos mais uma vez o que dissera Edward John Mostyn Bowlby que foi um psicólogo, psiquiatra e psicanalista britânico notável por seu interesse no desenvolvimento infantil e por seu trabalho pioneiro na teoria de apego:

“Acumulam-se evidências de que seres humanos de todas as idades são mais felizes e mais capazes de desenvolverem melhor seus talentos quando estão seguros de que, por trás deles, existem uma ou mais pessoas que virão em sua ajuda caso surjam dificuldades”.
Um grande abraço para todos que certamente apoiam as ideias de lutar incansavelmente à procura da felicidade do nosso povo.
                                                         
                                                                                                                       Do amigo Jacy Moreira.